**Porto dos Gaúchos – a cidade que nasceu desafiando a selva**







Quem viveu cinco anos no norte de Mato Grosso, como eu, acaba desenvolvendo uma curiosidade quase irresistível por Porto dos Gaúchos. A cidade sempre me pareceu um mistério: como foi possível fundar, em pleno coração da Amazônia mato-grossense, um povoado nos anos 1950, décadas antes da BR-163 (Cuiabá-Santarém) ou de qualquer infraestrutura mínima de sobrevivência?

A resposta chegou em forma de uma obra monumental: um livro de quase 400 páginas organizado por Henrique Meyer, filho do lendário colonizador Guilherme “Willy” Meyer (falecido em 1994). Com a ajuda dos irmãos Ingrid e Neac Arigbátsa, Henrique reuniu fotografias, recortes de jornais, boletins da empresa colonizadora e relatos de época para contar, em detalhes impressionantes, a saga dos pioneiros que transformaram a Gleba Arinos em uma das cidades mais antigas e simbólicas do norte matogrossense.

Trata-se de uma experiência de colonização privada e visionária, rara no Brasil. Em 1955, partindo de Santa Rosa (RS), Willy Meyer liderou um projeto ousado: levar dezenas de famílias – em sua maioria de origem alemã e italiana – para abrir lotes na margem do rio Arinos. O acesso era quase impossível. Uma caravana de vinte homens, chefiada inicialmente por Alfredo Carlson, saiu no dia 23 de março com caminhões, máquinas, barcos desmontáveis e toneladas de mantimentos. Foram 32 dias de estradas de terra, atravessando Santa Catarina, Paraná, São Paulo e o então sul de Mato Grosso até a Cachoeira do Pau (hoje São José do Rio Claro). Lá, passaram uma semana construindo batelões para descer o rio até o ponto exato escolhido para o núcleo inicial.

Quando finalmente chegaram, já sob comando de Willy Meyer (que se juntara ao grupo em Cuiabá), realizou-se a cerimônia oficial: hasteamento da bandeira brasileira e lavratura da Ata de Fundação, redigida pelo jovem estudante de jornalismo Walter Irgang – cujos registros são uma das joias do livro.

As imagens e documentos revelam um planejamento minuciosamente detalhado e, sobretudo, gente feita de outro material: homens e mulheres com coragem fora do comum, paciência de santo, organização prussiana e um apreço quase artístico pelo trabalho bem-feito. Tudo movido por um desejo visceral de escrever uma nova história num lugar onde, até então, só existia selva.

A área havia sido adquirida do Estado pela Colonizadora do Noroeste Mato-grossense (Conomali), criada especialmente para loteamento e venda das terras. A distância de Cuiabá – 700 km de picadas e rios – tornava tudo ainda mais épico. Mesmo assim, o sonho venceu. O município de Porto dos Gaúchos foi oficialmente criado em 1963, tornando-se o mais antigo ao norte da Serra do Parecis. Em 1983, recebeu a primeira comarca judicial da região norte de Mato Grosso. Com o passar das décadas e a chegada do progresso, seu território original deu origem a outros três municípios: Juara, Novo Horizonte do Norte e Tabaporã.

O livro de Henrique Meyer não é apenas uma homenagem ao pai e aos pioneiros. É um documento histórico precioso que resgata, com riqueza de detalhes e emoção, uma das últimas grandes epopeias de colonização privada do Brasil – aquela em que um grupo de gaúchos, literalmente, abriu um porto no meio do nada e fez nascer uma cidade.

Se você tem qualquer ligação afetiva ou histórica com o norte de Mato Grosso, essa obra é leitura obrigatória.













 


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