Joy




O relógio da parede marcava quase quatro da manhã quando Gabriela, enfim, deixou-se cair sobre o banco de veludo encardido do camarim do Bataclan. O vestido de lantejoulas prateadas, que horas antes reluzia como um céu de estrelas, agora parecia pesado demais, como se carregasse o peso de todas as noites que ela já dançara ali.

A maquiagem escorria em fios negros sob os olhos; o rouge, borrado, dava-lhe um ar de boneca abandonada. Nos pés, as sandálias de cetim estavam rasgadas na sola — ela nem se lembrava de quando acontecera. O corpo doía inteiro, das coxas queimando até a nuca, que parecia presa num torno.

Os coronéis tinham sido generosos aquela noite, como sempre. Flores, champanhe, notas gordas enfiadas no decote com dedos trêmulos de desejo. O coronel Narciso, o mais velho e o mais apaixonado, ficara até o fim, sentado na primeira fila, os olhos vidrados nela como se fosse a última mulher do mundo. Quando o espetáculo terminou, ele subira ao palco mancando, o chapéu na mão, e depositara aos pés dela uma caixinha de veludo azul-escura.

“De Paris, minha rainha. Só para você.”

Dentro, um frasco de cristal lapidado: Joy, de Jean Patou. O perfume mais caro do mundo, diziam. Gabriela abrira ali mesmo, diante dele, e borrifara uma única gota no pulso. A fragrância explodiu — jasmim, rosa, algo quente e animal que parecia feito de ouro líquido. Narciso fechara os olhos, inspirando como quem reza. Depois beijara-lhe a mão, demorado, deixando ali o bigode grisalho tremendo de emoção.

Agora, sozinha, ela encostou a cabeça na parede fria e sentiu o perfume ainda agarrado à pele, resistindo ao suor, ao pó de arroz, ao cheiro de cigarro que impregnava tudo. Era o único luxo que restava inteiro. O resto — o aplauso, os olhares, os juramentos de amor eterno — já se dissipara como fumaça no salão vazio.

Gabriela levou o pulso ao nariz mais uma vez. O aroma era tão perfeito que doía. Era o cheiro de uma vida que ela nunca teria: tardes em Paris, vestidos que não precisavam ser pagos com o corpo, um homem que a olhasse sem precisar pagar entrada. Por um segundo, quase acreditou que ainda podia ser aquela mulher.

Suspirou fundo, o suspiro de quem já não tem forças nem para chorar. Apagou a luz do camarim com o pé, ainda calçando a sandália rasgada.

Amanhã haveria outra noite. Outros coronéis. Outros perfumes caros que não mudariam nada.

Mas naquela madrugada, por alguns minutos, o Joy de Narciso ainda a envolvia como um abraço que ninguém jamais lhe dera de verdade. E isso, só isso, bastava para que ela conseguisse levantar-se mais uma vez.


Picture: Melancholic Muse 

(Memories of You),

white pencil on black paper.

Adrian Moraru.

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