A revolta da natureza.






Infiltrações numa das mais conhecidas casas do mundo, a Falingwater, hoje transformada em museu, forçam uma ampla reforma, em bela homenagem à arquitetura.


NÃO EXISTE, em todo o mundo, casa tão celebrada do ponto de vista arquitetônico quanto a Fallingwater, projetada pelo arquiteto americano Frank Lloyd Wright entre 1936 e 1937 para a familia de Edgar Kaufmann, dono de uma rede de lojas de departamentos. A casa da cascata está debruçada em cima de um córrego do município de Ste-wart, no estado da Pensilvânia. E a um só tempo prodígio de engenharia e estética - o casamento de pedras extraídas da vizinhança, concreto armado, aço e vidro com o verde da vegetação durante o verão e a brancura da neve nos meses de inverno.

Hoje transformada em museu, visitada por mais de 5 milhões de pessoas nas últimas três décadas, é classificada como patrimônio da humanidade pela Unesco. Trata-se de exemplo bem acabado de uma escola de construção a que se deu o nome de Prairie, ou pradaria — de linhas retas, lajes terminando em beirais, construção sólida e comunhão com a natureza. O próprio Lloyd Wright sempre fez questão de se afastar do rótulo, mas nunca houve como empurrar a Fallingwater para debaixo da enxurrada da história da civilização que a acompanha.

A novidade, agora, em nota irônica — a residência, de intimo relacionamento com a água, está fazendo água. As infiltrações - cabe ressaltar, desde o início elas brotaram e desembocaram em ruidoso rio de críticas — se aceleraram nos últimos tempos, danificando as paredes e parte das estruturas internas e externas. Resultado: ancorada por andaimes e coalhada de operários, ela atravessa uma reforma avaliada em 7 milhões de dólares e que só deve terminar em 2026, aos noventa anos da obra-prima. O di-lema: como resolver os danos sem mexer com os materiais originais utilizados na obra? É processo delicado, que pressupõe remover longos trechos da cobertura, trocar o material usado para impermeabilização (o alcatrão pelo gesso e concreto), e então refazer os trechos retirados. É trabalho cuidadoso e necessário, atalho para reviver anedotas da carreira profissional de Lloyd Wright.

Na defesa de seu trabalho, atento à mistura dos materiais de edificação com a terra e o chão naturais de onde era chamado a erguer edifícios, ele quase sempre deu prioridade ao que já estava lá. Certa vez, um cliente reclamou das insistentes e chatíssimas gotas que lhe caíam sobre a cabeça, na linda poltrona de descanso da sala de estar. A resposta do arquiteto: "Troque a cadeira de lugar". Ele mesmo gostava de relatar esse episódio, por representar a trilha fundamental das ideias que defendia como mantra.

A lenta e cuidadosa restauração tem um quê de beleza, como homenagem a Lloyd Wright, sem dúvida, mas também a um modo de entender a arquitetura. Não se trata apenas de consertar os estragos, por mera manutenção, o que já seria louvavel. Há respeito a um raciocínio fundamental, durante muito tempo esquecido e que agora renasce, em tempo de cuidado com o ambiente e zelo pela sustentabilidade: o bonito é sair do mero joguinho de peças de encaixe, montagens industrializadas que poderiam despontar em qualquer canto, para um traçado exclusivo, que só poderia estar naquele exato ponto geográfico. Dito de outro modo: as formas e volumes pensados por Lloyd Wright só fariam sentido naquele lugar e espaço, e é sempre bom lembrar que uma outra conhecidissima assinatura dele, o Museu Guggenheim de Nova York, parece ter nascido com a metrópole ao redor, banhada de arranha-céus.
"Na Fallingwater, é como se a arquitetura também estivesse construindo a paisagem, em fenomenal elogio à água, elemento vital da humanidade", diz o arquiteto Fernando Viegas, professor da Escola da Cidade, de São Paulo.

Fica, portanto, uma extraordinária lição do movimento de recuperação da joia que parece ter crescido do barro: os 7 milhões de dólares são nada se forem entendidos como aceno ao duplo movimento da arquitetura, de olhar artistico e de ciência. Cuida-se da Fallingwater como quem cuida do conhecimento humano. E não há como deixar de lamentar o descaso, no Brasil, com uma residência igualmente seminal, também de mãos dadas com as rochas e o rio ao redor, a Casa das Canoas, de Oscar Niemeyer, erguida em 1953, no bairro carioca de São Conrado. Ela foi tombada em 2007, mas está descuidada. É uma pena.






  1. Revista Veja edição 2963, de 26.09.2025


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