Descobrindo os Caminhos da América do Sul


Fotografias de PAULO SCHEUENSTUHL





 















Descobrindo os Caminhos da América do Sul

Texto de LUIZ COSTA FILHO


Saindo de Belo Horizonte em princípios de abril deste ano, viajamos em dois Fiat-147 por quase toda a América do Sul, cobrindo, entre descobertas fasci nantes e momentos de surpresa somente reservados aos caçadores de belezas e aventuras, vinte e oito mil quilômetros do continente. Uruguai, Argentina, Paraguai, Chile, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela, além de todos os estados litorâ neos brasileiros, foram se sucedendo num percurso em que homens e máquinas tiveram que dar tudo de si. Atravessando os Andes, por entre as neves eternas, a mais de quatro mil metros de altura; cruzando o Atacama, no Chile, um dos maiores desertos do mundo e onde a temperatura varia de mais de trinta graus entre o dia e a noite; percor rendo estradas adversas, como as encontradas no Peru, onde ora se estava ao nível do mar, ora a mais de dois mil metros de altitude; ou enfrentando a selva, a chuva, a lama e os buracos do caminho que liga Eldorado, na Venezuela, a Boa Vista, no Brasil, e daí até Manaus, com a ameaça do encontro desagradável com os temidos Waimiri-Atroari vivemos uma epopéia que certamente nenhum daqueles que dela participaram ja mais virá a esquecer.

Quando saímos de Belo Horizonte para uma aventura que iria estender-se por 28 mil quilômetros através da América do Sul, estávamos bastante motivados por essa verdadeira expedição de descoberta do nosso continente, certos de que abrir-nos perspectivas fantásticas. ela iria

O percurso Minas Gerais-São Pau lo-Paraná-Santa Catarina-Rio Grande do Sul (muito embora já conhecêssemos aquelas estradas cujo fluxo de veículos é praticamente ininterrupto) ainda foi capaz de nos proporcionar repetidas emoções, com o contraste chocante entre as majes tosas paisagens da Serra do Mar e as sua ves ondulações dos pampas gaúchos. Os pampas, por sua vez, quando já nos en contrávamos dentro das fronteiras do Uruguai, na excelente rodovia que liga Chuí a Montevidéu, foram morrendo aos poucos, dando lugar às grandes áreas marcadas pela presença do homem com suas fazendas de gado.

Essa viagem através do Uruguai, com suas imensas estâncias, cidades pacatas e um povo acolhedor, representou expe riência das mais gratificantes. O país tem 184 mil quilômetros quadrados, e sua ca pital, Montevidéu, possui um ar de so briedade britânica, apresentando em al guns pontos, como no Palácio Salvo e no Victoria Plaza Hotel - guardadas as devi das proporções - certas semelhanças com a paisagem londrina.

Ligando Montevidéu à Colônia do Sa cramento existe uma moderna auto estrada que transforma aquele percurso de 180 quilômetros em um magnífico pas seio que dura menos de duas horas. Os hotéis-cassinos da região são um poderoso fator de atração turística. Por isso, nos fins de semana, os cassinos da Colônia ficam repletos de argentinos, que cruzam o rio da Prata a fim de arriscar alguns pesos nas roletas. Mas o apelo turístico da Colônia não se atém apenas à atração do jogo. Graças à posição privilegiada que ocupa no estuário do Prata, a cidade é conside rada, como já o era no século XVII, um excelente entreposto comercial. Além disso, ela ainda conserva vestígios arquite tônicos bastante nítidos da época da colo nização espanhola, especialmente em al gumas construções, como o Forte de São Pedro, o Convento de São Francisco Xa vier e a Casa do Vice-Rei.

Da Colônia do Sacramento a Buenos Aires, a travessia do rio da Prata se faz em cerca de duas horas (sessenta quilômetros). Buenos Aires já não oferece mais ao turista principalmente o brasileiro  as mesmas tentações de alguns anos atrás. As lojas da Calle Florida já não apresentam preços tão vantajosos, e se a pessoa quiser um artigo mais barato tem que se deslocar para o Barrio Once, que é mais ou menos como a zona da Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro, ou da José Paulino, em São Paulo.

Da capital argentina, já com mais de três mil quilômetros rodados, subimos rumo ao norte, em direção ao Paraguai. Volta e meia tínhamos que parar, pois nesse dia havia um maior rigor nas revistas, devido ao fato de a nossa passagem pela região coincidir com a visita do Presidente Videla a Assunção. Mas, no final, a Alfândega argentina nos liberou com rapidez e atra vessamos o rio Pilcomayo.

Em Assunção, o que mais nos impres sionou foi o regime de Zona Franca. Ele é feito com tal desenvoltura que qualquer visitante pode engraxar os sapatos ou comprar cigarros com a moeda do seu país, e receber o troco na mesma moeda, ou naquela que desejar. Saímos de Assun ção cruzando novamente o Pilcomayo e fizemos uma parada na cidade argentina de Santa Fé, na nossa demanda à fronteira com o Chile. É impressionante a infra estrutura hoteleira do interior da Argen tina. Ela é, sem dúvida, a mais eficiente do continente. E os preços são bastante razo áveis. De Santa Fé partimos para Men doza, a última grande cidade argentina antes de se atingir a fronteira chilena. À medida que nos íamos aproximando da Província de Mendoza, começamos a sen tir que estávamos entrando em um mundo diferente o mundo da Cordilheira dos Andes.

Para percorrer os 380 quilômetros que separam Mendoza de Santiago gastam-se, no mínimo, dez horas. Do sopé da Cordi lheira até a passagem no alto são setenta quilômetros de subidas íngremes e curvas de noventa graus, numa estrada de terra e pedras soltas. Mas a beleza da paisagem compensa a dureza do trecho. O pano rama que se contempla do local onde se encontra a estátua do Cristo Redentor, a 4.200 metros de altitude, entre a Argen tina e o Chile, é inesquecível.

De Santiago até Arica, última cidade chilena por onde passaríamos, já na fron teira com o Peru, fomos submetidos novamente a um grande esforço, durante a travessia do imenso deserto do Atacama, atualmente o principal centro de prospec- ção mineral do país. Depois do deslum- bramento de neve e luz que se sente du- rante a travessia da Cordilheira dos An- des, a entrada no deserto do Atacama produz um novo e forte impacto. Co- brindo toda a faixa de planície existente entre o oceano Pacífico e a Cordilheira, esse deserto, que se estende por mais de dois mil quilômetros, apresenta todas as condições imagináveis de agressividade contra a presença do homem. Com raríssimos postos de gasolina no deserto, foi preciso economizar, e chegamos a quase 16 quilômetros por litro com os carros totalmente carregados. Aí as temperaturas médias oscilam, durante o dia, em torno dos quarenta graus, para à noite baixar violentamente, parando em torno dos dois ou três graus centígrados.

Após dois mil e quinhentos quilômetros de reta no deserto do Atacama, no Chile, voltamos a percorrer a Cordilheira dos Andes, já no Peru. Durante a nossa passa gem pelo deserto chileno os contrafortes da Cordilheira nos acompanhavam per manentemente, servindo de limite e es premendo a aridez do Atacama entre suas neves eternas e as águas do Pacífico. A partir de Tacna, a primeira cidade peruana na fronteira, a paisagem começa a mudar, embora o deserto continue a ser a principal característica de todo o litoral peruano, mas desta vez com um total pre domínio das curvas. A estrada acompanha rigorosamente todos os recortes do litoral, ora ao nível do mar, ora a dois mil metros de altitude. nar,

De Tacna a Lima são mil e trezentos quilômetros pouco estimulantes. Asfalto esburacado, pistas estreitas e cruzes lem brando acidentes fatais, juntando-se, ainda, as condições mais desfavoráveis de temperatura (quatro graus nos pontos mais altos e quarenta ao nível do mar).

Fundada em 1535, Lima foi o último ponto de apoio dos espanhóis na América. Por isso mesmo é a capital que mantém maiores vestígios da época da colonização. Um dos melhores registros da presença espanhola na capital peruana é a Plaza de Armas, no centro da cidade, onde ainda se encontram casas e igrejas cercadas randas construídas com madeira escul por va pida. Outra peculiaridade de Lima é o seu baixo índice pluviométrico. Seus quase três milhões de habitantes não vêem chu vas desde 1958. E os doze milímetros que caíram aquele ano foram suficientes para inundar a cidade, em conseqüência princi palmente da falta de esgotos. A ausência de chuvas criou hábitos bastante peculia res nos moradores da cidade. Muitas resi dências nos bairros mais humildes não possuem telhados, não existem lojas que vendam capas ou guarda-chuvas, e pude mos notar que os nossos Fiat eram os úni cos carros a possuir limpadores de pára brisas.

De Lima a Trujillo são setecentos qui lômetros de uma estrada um pouco menos acidentada do que o trecho entre Tacna e a capital. Mesmo assim, o cuidado com quem anda na contramão tem de ser per manente. E de Trujillo à fronteira com o Equador, então, toda a prudência é pouca: são quatrocentos quilômetros com milhares de buracos, por ser esta uma zona de freqüentes abalos sísmicos, que tornam praticamente impossível a conser vação da rodovia.

Na fronteira do Peru com o Equador a revista de bagagens é tão rigorosa que chegaram a desaparafusar as laterais dos carros para verificar se não carregávamos algum contrabando. Fomos revistados em três pontos diferentes, e em cada um deles tivemos que abrir todas as caixas de equipamentos e de material fotográfico. Gas tamos perto de cinco horas para atravessar a fronteira, o que, segundo os moradores da região, foi até rápido demais.

Entramos no Equador penetrando por Huaquilles. De repente nos vimos numa verdadeira selva, que no entanto era ras gada por uma rodovia de asfalto impe cável.

Depois de Río Bamba, iniciamos o per curso do trecho mais alto que até então havíamos enfrentado: setecentos quilôme tros a três mil metros de altitude média. Apesar disso, os carros permaneceram inalterados em seu comportamento mecâ nico, e a excelente estabilidade dos Fiat 147 ajudou-nos a percorrer o difícil trecho com segurança absoluta. Quando faltavam duas centenas de quilômetros para che garmos a Quito, deparamos com o impo nente Chimborazo, com 6.267 metros, o mais elevado vulcão em atividade.

Depois de La Paz, Quito é a mais alta capital do mundo, com 2.850 metros acima do nível do mar. Suas amplas ave nidas, modernos centros de compras e prédios à prova de terremotos refletem a boa situação de um país que é o segundo produtor de petróleo da América do Sul e que ainda mantém armazenadas reservas estimadas em seis milhões de barris. A população do Equador é composta, pre dominantemente, de índios e mestiços (cerca de oitenta por cento do total), e o que mais atrai a quem chega ao país é o artesanato indígena, rico em cores vivas.

Depois que saímos de Quito, em direção a Bogotá, três cidades nos despertaram especial atenção: Otavallo, uma povoação índia, ainda no Equador, e Popoyan, já na Colômbia - as duas pela beleza dos traba lhos artesanais, e Cali, a segunda cidade do país, com mais de um milhão de habi tantes e que, muito embora tenha sido fundada no século XVI, constitui hoje um ótimo exemplo do que arquitetura. capaz a moderna arquitetura.

Quanto a Bogotá situada numa me seta cercada de montanhas e com o as pecto de leito de antigo lago - fica a mais de 2.600 metros de altitude. Apresenta al gumas obras que valem a pena ser vistas tanto pelo seu valor histórico quanto pelo artístico e cultural, como, por exemplo, a Catedral, dita do Sal, a Igreja de Monser rat e o Museu do Ouro.
Para percorrer os 1.100 quilômetros que separam a fronteira chilena de Lima, os. Fiat-147 venceram os milhares de curvas da costa peruana. Lima, a capital do Peru, foi o último reduto dos espanhóis na América do Sul. Por isso, é a cidade hispano-americana que guarda maiores vestígios da colonização.

Quando chegamos a Cúcuta, na fron teira da Colômbia com a Venezuela, tive mos uma surpresa desagradável. Por ser fim de semana, somente colombianos e venezuelanos podiam trafegar livremente entre um país e outro. Estrangeiros como nós teríamos que aguardar a segunda feira, quando finalmente partimos.

Levamos cerca de doze horas para per correr os 1.100 quilômetros da excelente estrada que separa Cúcuta de Caracas. E, após mais de 50 dias de estrada, os carros haviam-se transformado, graças à como didade dos bancos, na parte mais confor tável da nossa viagem. Pelo espaço dispo nível, foi possível montar num dos Fiat uma redação ambulante, que contava com máquina de escrever e gravador acoplado.

Ao atingir a capital venezuelana, gas tamos mais de duas horas para conseguir chegar ao hotel. Explica-se: Caracas é uma cidade moderna, com uma arquitetura ao nível das grandes metrópoles do conti nente, mas espremida dentro de um vale e com um número de automóveis em pro porção várias vezes maior do que o de qualquer uma delas. Por isso, toda a infra-estrutura urbana caraquense foi montada à base de viadutos. Para se ter uma idéia precisa da extensão desses viadutos, basta multiplicar por dez as vias elevadas existentes no Rio de Janeiro e São Paulo. Rodamos um tempo enorme subindo e descendo viadutos até encontrar o hotel onde descansaríamos para enfren tar o último trecho da viagem no exterior.

Faltavam 1.300 quilômetros para en trarmos novamente no Brasil quando dei xamos Caracas. Sempre avançando por excelentes rodovias, passamos pelo rio Orinoco, em Ciudad Bolívar, capital do Estado de Bolívar -- o segundo maior produtor de petróleo do país -, e chega mos a Eldorado, a última cidade servida por asfalto, a duzentos quilômetros da fronteira com o Brasil. E após 21 mil qui lômetros rodados atravessávamos a fron teira brasileira, na serra de Pacaraima, em plena selva amazônica. Um cearense amá vel resolveu rapidamente os nossos pro blemas alfandegários e convidou-nos para um café no Quartel da Guarda. Esse foi o nosso último contato com a civilização nos duzentos quilômetros de chuva, lama e in setos que enfrentamos até chegar a Boa Vista, capital do Território de Roraima. Ali iríamos descansar para enfrentar o trecho mais difícil da viagem os sete centos quilômetros que separam Boa Vista de Manaus.

Saímos às nove horas da manhã, levando conosco um único receio: o da passagem pela reserva dos Waimiri-Atroari. Ao che- garmos a Jundiá, recebemos do comando da unidade do Exército ali sediada ins- truções rigorosas: não parar nunca, andar sempre em comboio e não usar armas de fogo ou ingerir bebidas alcoólicas. Feliz- mente os Waimiri-Atroari não aparece ram, e o máximo que ocorreu foi escu- tarmos as histórias dos ataques que eles costumam praticar contra os motoristas que cruzam a estrada. Eram nove horas da noite quando chegamos a Manaus, cober- tos de lama. Em dois dias tínhamos en- frentado mil e cem quilômetros de bura- cos, calor sufocante e ondas de insetos. E momentos de grave apreensão, ao atraves sarmos a reserva indígena. Mas atingíra mos sãos e salvos Manaus, depois de per correr 22 mil quilômetros de viagem sob adversas condições de clima, de terreno e, muitas vezes, de costumes.

Havíamos pensado em fazer o restante do percurso por terra, via Humaitá Porto Velho Cuiabá. Mas o Nordeste, com sua carga imensa de belezas naturais, nos pareceu a melhor opção. Levamos quatro dias a bordo de uma barcaça des cendo o Amazonas em direção a Belém. Nas horas vagas, pescávamos tucunaré e apreciávamos o espetáculo do sol se pondo. A sensação de estar em pleno oce ano é total. O Amazonas chega a atingir, próximo à sua desembocadura, quase cem quilômetros de largura, e, por isso, não conseguíamos ver as suas margens.

Os oitocentos quilômetros que separam Belém de São Luís são impecáveis. Deu para chegar no fim da tarde e apreciar o casario colonial da capital maranhense, para à noite ir comer uma caldeirada de camarão. De manhã partimos para Forta- leza. Natal e Recife foram as etapas se guintes. Depois, Salvador. Pelo litoral, atravessamos todo o sul da Bahia e pene- tramos no Espírito Santo. De Vitória ao Rio de Janeiro foram aquelas belezas já tão decantadas do litoral fluminense Macaé, Cabo Frio, Búzios. Na manhã seguinte partimos para Belo Horizonte, a meta final da nossa viagem. Ao chegarmos lá, nos emocionamos com a grande festa que nos aguardava. Faixas e cartazes, ba tedores de polícia e fogos de artifício sau davam a nossa passagem pelas ruas da ci dade. Enquanto olhava toda aquela festa em torno de nós, eu rememorava o que havíamos enfrentado: altitudes de mais de quatro mil metros entre as neves dos An des, variações de temperatura de mais de trinta graus no deserto do Atacama, as pe rigosas e intermináveis curvas nas estradas do Peru, e as dificuldades traduzidas em chuva, lama e calor nas selvas do Norte do Brasil. Voltei outra vez ao presente quando alguém nos ergueu um brinde e despejou champanha sobre nossa cabeça.

Fonte: Revista Geográfica Universal- Agosto 1977.



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