Coronel não morre

Para garantir a eleição dos seus candidatos “o processo é muito simples”, disse o próprio coronel, resumindo as estratégias de coação, fraude e favor:
“Eu e mais alguns amigos damos transporte aos eleitores. Mando um boi para cada seção eleitoral e às vezes mando cachaça para depois das eleições. Não admito fiscal de nenhum partido. Eleição em Limoeiro tem que ser feita por mim. Sempre fiz e nunca me dei mal”¹.

Os prefeitos de Limoeiro eram sempre os que Chico Heráclio queria que fossem e ele dizia: "melhor do que ser prefeito é mandar no prefeito". Como ocorria com os outros chefes políticos municipais, o pacto implícito era que o governador garantia ampla autonomia ao coronel em seu reduto; em troca, esse assegurava os votos para o governador eleger seus candidatos.

São famosas algumas de suas histórias. Naquela época, o voto era dado por meio de uma cédula com o nome do candidato que o eleitor depositava na urna. (A cédula única, com os nomes de todos os candidatos, veio depois. Já foi um avanço.) Chico Heráclio preparava os envelopes com as cédulas de quem ele queria eleger, lacrava-os em um envelope, e os distribuía aos seus eleitores "de cabresto".

Geralmente, os votantes eram buscados em suas casas pelos empregados do coronel e levados à seção onde deveriam votar. Eles cumpriam o ritual esperado e, em seguida, recebiam farta comida e bebida. Talvez, algum dinheiro, também.






O coronelismo no Nordeste já viveu seus grandes dias. A história do coronelismo é a própria história política do Brasil nesta região - diz Geraldo Guedes, ex-secretário da Justiça de Pernambuco. Mas muita coisa se fez, direta ou indiretamente, para diminuir os dias dos chefões matutos, institucionalizados e fardados com as patentes da Guarda Nacional, criada em 1831. A cada golpe recebido - a estrada, o rádio, o caminhão, o retrato no título de eleitor; a cédula única - o coronelismo se abalava, mas não morria. Quando o primeiro coronel do sertão pernambucano foi processado por crime de morte, todos previram o desaparecimento do mandonismo, mas ele resistiu, O último coronel já foi cantado muitas vezes, sem nunca ter sido o último. Há ainda hoje, no Nordeste, vários coronéis na ativa, Chico Heráclio, de Limoeiro, conhecido como o Leão das Varjadas, é, talvez, o maior deles. Pode até ser o último.

REALIDADE Novembro. 1966






Sua vontade sempre foi a lei de todos

À sete da manhã já o coronel está em seu gabinete - a varanda da casa.
Como sempre, há várias pessoas ali à espera de ordens: um ou dom motoristas, alguns cabras, o secretariado da cozinha, os meninos de recado. Estão o coronel começa a atender os que chegam.
Entra Maria das Flores, acompanhada de duas meninas. Vem para acertar contas:
- O movimento está bom, coronel. Já alistamos 1.500 só em Carpina. Estas duas moças também são eleitoras, uma tem 16, a outra 17 anos, mas nóis aumentamos a idade .....
- Aumentou as duas pra 18, foi?
- Foi.
- Oxente, Maria, tu feiz as duas irmã ficá gêmeas ...
Da cerquinha da varanda, sem entrar, mostra-se um moreno baixo, cabelo cortado rente, os olhos piscando muito:
- Baú tá liso, coronel.
O coronel levanta-se, vai até o homem, possa-lhe umas notas de mil, manda-o caminhar, e antes de voltar para - cadeira, explica:
- Com toda a cara de bobo, esse ai já matou um. Tirei ele da cadeia.
Entrando pela porta dos fundos, uma mulher muito bem disposta surpreende o coronel.
- O que, manada, já está raspando a perna do defunto? Nem bem o homem chegou ao céu, já vosmicê tá toda enfeitada outra veiz?
A mulher engrola umas frases, mas vai logo ao principal. Precisa viajar para Recife e quer um dinheirinho. Fala das duas filhas que na próxima eleição já vão votar. O coronel corta a conversa, diz uma brincadeira qualquer para um dos presentes, chama Zefa, a cozinheira, para trazer mais um cafezinho e depois apanha a comadre pelo braço e vai conversar lá dentro.
Há bens umas 15 pessoas na varanda, mas continua chagando gente. Todo espalhafatos, entra Paulo Louco. Vem dar notícia de um jumento que mandou trazer de Minas e que já está a caminho, viajando de navio:
- É animal para 900 contos, mas sua produção é garantida: só mulas de onze palmos.
Ajeitando a calça, que sempre ameaça cair quando ele está de pé - por causa do cinto fora das passadeiras - reaparece o coronel. Dá com Paulo Louco e larga boas risadas. Deixa-o contar seus negócios extravagantes com mulas e jumentos, diverte-se um momento, mas logo se dá por satisfeito:
- Vai lá dento, Paulo. Diz pra Zefa lhe arranjá di comê.
O moço obedece. O coronel, já outra vez acomodado na cadeira, reassume a iniciativa da conversa. Volta-se para um homem que estava a um canto sem dizer palavra, desde bem cedinho:
- Tonho, você está outra veiz se enleando com rabo de saia, num tá? Já andei sabendo disso. Deixa de molecagem, tu já é homem de ter vergonha. A cumade Maria veio queixá que você tá botando casa pra outra muié, e isso num se faiz. Vai pra casa conversar mais com a cumade Maria, e diz pra ela que vai largá a outra. E depois vêm oceis dois aqui, pra jurá na minha frente que tu vai vivê como homi direito, de uma casa só. Dessa idade, e ainda não sabe fazer as coisas...
Tonho diz que sim com a cabeça, levanta-se e vai.
Vindo de dentro da casa, aparece na varanda um rapaz de 20 anos, simpático, o cabelo bem penteado e ainda respingando. Falador, discute com o coronel sobre a hora em que veio dormir e garante que não bebeu nada. Nem cerveja. Pede autorização para que um dos motoristas o leve á cidade. Logo que o carro arranca, o coronel conta:
- Esse filho duma égua é meu filho. Agora está morando aqui, porque ele é bom pra eu ditar os boletins de política.
O nome do rapaz é Reginaldo, e o coronel acha divertido o fato de haver um outro seu filho que também se chama Reginaldo. Diz que não se intromete na escolha do nome que as mulheres queiram dar aos seus filhos naturais:
- Isso é problema delas, não interfiro. Mas também não desamparo nenhum.
Fala que não sabe exatamente - parece mais não querer revelar - o número de seus filhos naturais. Uns 20 ou 30.
- Todos homens. Filho meu, natural ou legítimo, só é homem. Mulher eu não tenho produção própria...
Afilhados, ele tem mais de dez mil, o que lhe rende um exército de compadres e comadres. Entre os filhos naturais, um é artista de rádio, outro foi famoso salteador em Pernambuco (agora faz parte do seu gabinete); o último tem apenas quatro meses de idade.
A conversa é interrompida por seu Severino. Ele vem dizer ao coronel que seu caminhão - "aquele que o senhor ajudou comprar" - sofreu um acidente e se estragou todo. Sem dinheiro para o conserto, e como o caminhão é a única fonte de renda da família, estava ali para pedir um eixo cardã novo. Uma jovem bonita acompanha seu Severino mas se mantém em segundo plano. O coronel quer datalhes. Pergunta se ninguém ficou machucado, quem teve a culpa do acidente, a conversa fica animada, o homem conta tudo, o coronel lamenta o que amoleceu mas no fim se desculpa:
- É, cumpadre, mas eu tô muito sem dinheiro, não dá pra li arranjá a peça.
Aí a moça entra em ação. Insinuante, toda promessas, chega bem pertinho do coronel. Repete a história, dramatizando bastante, dizendo-se nervosa e afirmando que tem certeza da ajuda. O coronel a esta altura é mais olhos do que ouvido. Pede, por fim, que ela volte amanhã, para ele repensar no assunto. A moça diz que vem sim, acertam hora, e pai e filha se despedem. O coronel volta-se para os presentes com um riso maroto e pergunta:
- Quanto custa o diabo deste eixo?
Antes de chamar todo mundo que está na varanda para o almoço (há sempre comida para muita gente em casa), o coronel ordena a um dos empregados que reúna, às cinco horas, uma meia dúzia de cabras bons de tiro, para fazer um tiro ao alvo. Recentemente ele operou uma das vistas e agora quer treinar a mira com a outra, para ver se ainda acerta. Quer também cortar o papo de Fernando - o filho natural que já foi assaltante - pois o menino anda dizendo que joga uma laranja para cima e enche-a de bala antes que ela chegue ao chão. Diz para o empregado não se esquecer de mandar buscar o Zé Vigia - o mais famoso de seu cabras - e se levanta em direção à copa, fazendo um movimento com a cabeça:
- Vam'bora cumê.
Uma fila obediente segue o gordo coronel Chico Heráclio.
Limoeiro é uma cidade do agreste pernabucano, a faixa entre a zona da mata, açucareira, e o sertão. Cortada pelo rio Capibaribe, que nesse ponto vive seco boa parte do ano, Limoeiro tem 30 mil habitantes, bons colégios, ruas quase todas calçadas, emissoras de rádio, televisão nas casas e comércio bem desenvolvido. Tudo isso, mais o fato de estar a pouco mala de 100 quilômetros de Recife, devia fazer de Limoeiro uma cidade naturalmente anticoronelista.
Mas é aqui, nesta cidade - "que parece adiantada mas só lê 100 jornais por dia" - de acordo com o amargurado jornaleiro, que o coronel Francisco Heráclio do Rêgo, ou simplesmente Chico Heráclio, como é mais conhecido, desenvolve ainda atividade impressionante. Ele está com 81 anos e há 60 sua vontade é lei, não só em Limoeiro, mas em municípios vizinhos, onde também tem terras e votos. Seu raio de ação atinge 50 mil pessoas. Todas conhecem a força do coronel. E a respeitam. Através do tempo a riqueza da família de Heráclio só tem sido aumentada: é dona das melhores fazendas, da indústria nascente - principalmente da de tecidos de algodão e óleos vegetais - do melhor gado. Isso significa força política, controle sobre a Prefeitura, a Camara, a Cooperativa, e todos os cargos federais e estaduais da região, como a Polícia, por exemplo.
Pessoalmente, o coronel Chico Heráclio tem 13 fazendas e dois engenhos. A maior propriedade fica no sertão e tem quase 30 mil alqueires; a mais famosa, e melhor, é a das Varjares; muito ligada á sua fama. Ele é o Senhor das Varjadas.
O coronel agora está almoçando. A mesa é simples, em atenção à sua dieta de homem cuidadoso com a saúde. Nada de muita gordura e coisa picante. Carne cozida, arroz, farinha, feijão verde, queijo assado, cuscuz de milho, banana assada, e uma variedade de legumes cozidos: macaxera, jerimum, cará, inhame, chuchu, batata doce. Fruta caseira de sobremesa. E café. Bebida nunca. A mesa não é muito grande, mas geralmente almoçam mais de 20 pessoas, em vários turnos. Quem estiver na casa do coronel em hora de refeição só não come se não quiser.




E o pensamento dele:


P - O Sr. é rico, coronel?
R - Meu filho, você viu a minha casa. Tem geladeira? Televisão? Até o rádio anda enguiçado... O que tenho construí com meu trabalho aqui na fazenda, pois nunca fui dado às letras. Comecei a estudar no Recife, mas uma epidemia me trouxe de volta, ainda menino.

P - Não concluiu nem o primário?
R - Já tive inimigo querendo cassar meu título de eleitor por analfabetismo, ora veja! Mas, minha pouca ilustração não me atrapalhou no governo das nossas 13 fazendas e dois engenhos.

P - Sua família é muito grande, coronel?
R - Sou viúvo três vezes. Aquela mocinha que você viu lá dentro, bulindo comigo, não é esposa não! É minha afilhada e arrumadeira. Tenho quatro filhos, o menor é esse ximbute de 13 anos. Mas filho meu só é de maior quando eu morrer. Ninguém fuma nem bebe na minha frente. Nem o Francisco e o Heraclinho, que são deputados. Aliás, esse é o único diploma que dei para eles, o de deputado. O José não tem porque não quer.

P - Desculpe, coronel Chico, mas corre por aí que o Sr. tem mais de 40 filhos naturais...
R - Calúnia dos adversários, meu filho. Devo ter só uns 20 ou 30. E não desamparo nenhum. Aqui na Fazenda das Varjadas eu faço de tudo: dou injeção, distribui pílulas, empresto dinheiro, até já casei e batizei, no tempo em que existia união em Limoeiro e todos viviam bem.

P - Mas afilhados são muitos, não?

R - Mais de dez mil, menino. E compadres e comadres muito fiéis. Graças a eles nunca perdi eleição para prefeito, desde 1922.

P - Então o Sr. é muito querido...
R - Olha, a maior riqueza do mundo são as amizades, e nisso eu estou bem servido, graças a Deus. A Maria das Flores, que eu lhe apresentei há pouco, trabalha demais nas eleições. Não sei se você viu, mas ela me trouxe uma lista de 1.500 novos eleitores. Quer maior prova de amizade? Teve até um caso engraçado: ela alistou duas irmãs, de 16 e 17 anos, aumentando a idade das moças pra 18. Quer dizer, a Maria fez as duas irmãs ficar gêmeas...




Para os que querem conferir, uma reportagem com um enfoque de mais de 50 anos... Vão os fac-simile:












O conteúdo integral desse artigo mereceu uma reimpressão, juntamente com outros, em uma edição especial chamada "Documento Abril", -Grandes Reportagens, em Abril de 1976. Este, sim em meu poder.

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