Amaro - Um Brasileiro


Embora não seja o “Meu tipo inesquecível” , cabe um parênteses para o Amaro João da Silva: Lá por 1991, bem antes de Bill Gates ter escrito a sua “Estrada para o futuro, e a imprensa escrita era menos “pasteurizada”que nos dias atuais, eu lia semanalmente a revista Veja. E no mês de dezembro daquele ano, ela entrevistou um pobre trabalhador nordestino, o que por si constituía uma excessão a regra.Um comovente relato. As Páginas amarelas eram destinadas a personalidades de destaque, quer seja política, economia, artes ou religião. A ressonância dessa entrevista no entanto continuou por muito tempo, sendo tema social dos mais diversos timbres.





 Por quê o senhor cresceu pouco?

É de tanto trabalhar e passar fome. Desde pequeno é assim. Hoje mesmo, já deu meio-dia e eu estou em pé com um copo de café que tomei às 4h. Tem dia que a gente não sabe se vai comer ou não. Eu e a mulher damos primeiro a comida para as crianças. Depois, o que sobrar fica para nós.

Tem algum anão na sua família?

 Não. Tem gente muito pequena, feito eu. Meu tio, irmão do meu pai, também é baixinho. Eu acho que é por causa da fome braba do povo da roça.

O senhor já teve algum problema por ser muito baixo?

Só quando jogava futebol, na mocidade. Eu era goleiro, e entrava bola por todo lado.

Aqui no engenho existem outras pessoas da sua estatura?

Eu conheço bem uns dez, sem contar com meus filhos. Dos treze, cinco não vão crescer.

O que o senhor e sua família comem?

 De manhã, só café. No almoço, comemos feijão com muita farinha. E carne de charque, quando dá. De noite, batata-doce ou macaxeira, que eu planto na minha rocinha nos fundos da casa.

Como o senhor consegue ter forças para trabalhar?

O jeito é dormir um bocado para não ter fome. Acordo às 4h, tomo café e saio com a mulher para o trabalho. Depois de duas horas de caminhada, a gente chega no lugar do serviço. O tempo gasto no canavial depende da época. Se for na colheita, a gente passa o dia arrancando cana.

Na época de plantação, como agora, dá para voltar para casa ao meio-dia. Aí, depois de tomar uma lapada de cachaça, eu almoço, tiro um cochilo até 14h e passo o resto da tarde cuidando da minha roça. Quando dá 19h, eu vou dormir.

Os seus filhos tomam leite?

Os três meninos novinhos tomam, sim. Uma lata tem que dar para o mês inteiro, então a mulher tem que misturar muita água, para a lata durar o mês todo e todos os meninos tomarem leite.

O senhor come carne?

Como uma vez por ano, quando a mulher compra meio quilo.

Quais são os bichos do mato que o senhor caça para comer?

Ah, tem muitos. Lagarto, tatu, quandu, paca, tamanduá, que tem gosto de cupim, porco-do-mato, teju, jurubará, preá e lontra. Quando a fome aperta muito, a gente sai para caçar. Dependendo da sorte, até que encontra uns bichos.

O senhor já usou escova de dentes?

Não. Os meus dentes foram arrancados. Eu tenho chapa.

Como o senhor acomoda toda a família numa casa de 40 metros quadrados?

Num quarto, dormimos eu, a mulher e o filho mais novo. No outro, em duas camas, dormem os onze restantes. Noeme, a mais velha, é casada e não mora com a gente.

O senhor não poderia aproveitar melhor a roça em que pode plantar e conseguir melhorar sua renda?

Tudo o que eu planto na roça é para comer. Não dá para produzir mais porque é muito fraca a terra que a usina empresta para a gente plantar. A terra boa é para plantar cana.

Como o senhor consegue dinheiro para comprar roupas?

Os pixotinhos andam nus mesmo. Os outros usam as roupas que vão ficando dos mais velhos. Sapato, ninguém tem. Eu, como gasto roupa no trabalho, tenho duas calças e três camisas. A gente só compra roupa quando as velhas acabam e não prestam nem para o lixo.

Por que o senhor teve treze filhos?

Filho é para ter mesmo. Dá muito trabalho, mas é bom. Casei com 21 anos e foi nascendo quase um menino por ano. É assim mesmo a vida. Gosto do tamanho da minha família. Os filhos crescem e ajudam a gente. Mas, se a família fosse menor, também era bom, porque assim eu não precisava trabalhar tanto.

Qual o futuro o senhor quer para os seus filhos?

Quero que não faltem roupa e remédios para eles. E que eles cresçam, se casem por aqui mesmo, trabalhem na cana e na roça, comigo. Mas, se algum quiser ir estudar e trabalhar no recife, eu deixo.

Como o senhor os educa?

Ensino a respeitar os mais velhos, não tocar no que é alheio e não tirar a vida de ninguém. Às meninas, eu falo que devem casar e tomar conta dos filhos. Digo, também, que eles precisam aprender a ler, escrever e fazer contas para não ser explorados.

O senhor sabe fazer contas?

Não. Só com dinheiro.

Sabe ler e escrever?

Também não. Há quatro anos, a usina botou uma escola para pessoas adultas. A gente ia de noite, mas durou pouco tempo. A professora casou, foi embora e a escola fechou.

Quais são as lembranças que o senhor tem de seus pais?

Lembro deles no roçado, plantando macaxeira comigo e meus irmãos. Mas não lembro muito, não. Deus levou eles, acabou-se.

Algum de seus irmãos deu-se melhor na vida?

Dois seis irmãos, um morreu de tomar tanta cachaça. Todos os outros trabalham no campo, cortando cana.

O que o senhor costuma fazer aos domingos?

Quando não vou trabalhar no roçado, tomo dois copos de cachaça, depois tomo banho e vou dormir.

O senhor já viu televisão?

Uma vez só. Não lembro o que vi. Foi na praça de Amaraji. Tinha uma lá antigamente. As pessoas ficavam vendo, de noite. Mas quebrou e não botaram outra.

Tem rádio na sua casa?

Tinha um, mas vivia encostado porque o dinheiro não dava para comprar as pilhas. Um dia caiu e quebrou. Aí eu dei para a minha filha de presente de casamento. Se ela quiser, é só mandar consertar.

O que o senhor acha da usina em que trabalha?

Sou explorado por eles. Não somente eu, mas todo mundo que é empregado dos usineiros. Eu trabalho há 23 anos para a Usina Bonfim. E o que eu tenho? Vou morrer como nasci: nu e com fome.

O senhor conhece o Recife?

Só fui uma vez. Ali vi o mar. É muito bonito. Parece uma plantação de capim. Mas eu não tomei banho porque tive medo daquele mundão de água. Fiquei na areia tomando cerveja.

O senhor já andou de carro alguma vez?

Já. No caminhão de cana da usina. Um bocado de vezes. Em carro pequeno, umas quatro vezes, de buggy. Gostei. É macio, a gente não se cansa e chega logo.



Essa sua vida não cansa?

Cansa, mas não tem jeito de ser diferente. Cada dia, a miséria e o sofrimento aumentam.

E de quem é a culpa?

É desse tal de ‘Coli’ e dos usineiros.

O senhor está falando de Fernando Collor?

Sim.

Conhece ele?

Eu sei que ele é usineiro. E do governo também.

O senhor sabe qual é a função que ele ocupa no governo?

Sei não.

O senhor conhece o Pelé?

Conheço. Ele era um bom jogador. Era goleiro também. Se não tivesse morrido, ainda estava fazendo muitos gols.

O senhor sabe quem é a Xuxa?

Não, nunca ouvi falar.

O senhor já ouviu falar em Zélia Cardoso de Mello ou Marcílio Marques Moreira?

Não.

E Miguel Arraes, o senhor conhece?

Conheço sim. Esse é gente boa. É político.

Em quem o senhor votou na eleição para presidente?

Votei no Lula. E, se ele se candidatar, voto nele de novo. Lula é do partido da gente.

Qual partido?

Já esqueci. Mas ele é do nosso lado. Se tivesse ganho, a gente estava recebendo um salário melhor e as mercadorias não estavam tão caras.

O senhor e sua família não se divertem?

Uma vez por ano, no Natal, chegam uns brinquedos em Amaraji. Roda giratória, cavalinhos, carrossel. Aí eu levo os meninos para brincar lá.

O que é o Natal?

É uma festa onde as pessoas brincam. O povo rico dá presente.

O senhor vai dar presentes ao seus filhos nesse Natal?

Se puder, uma roupa para os menores.

Se o senhor pudesse voltar à juventude, o que faria?

Ia para o Recife ou São Paulo. Começava a estudar e ia tentar emprego no comércio. Teria uma vida bem diferente desta minha aqui. A roça não tem mais o que dar.

Como o senhor acha que é a vida numa cidade grande?

Acho que não tem tanto sofrimento. As pessoas vivem melhor e andam de carro. Não falta comida, também, porque tudo o que a gente planta aqui vai para lá. Tem escola para as crianças e emprego.

Qual seu maior sonho?

Queria ter uma casa minha mesmo para morar. Esta que eu moro é da usina e os homens podem me botar na rua a hora que quiserem. É só eu reclamar do serviço que eles me cortam. 

Em que o senhor acredita?

Em Deus, no padre e nos políticos. Acredito no céu e no inferno e, como sou um homem honesto, quando eu morrer minha alma vai para o céu.

E como é o céu?

É um lugar grande e bonito onde Deus mora. As almas boas vão para lá e cada fica no seu cantinho, triste, descansando.

As almas ficam tristes por quê?

Porque não podem mais comer, beber e nem namorar.

O senhor gosta de namorar?

Só com minha nega veia. Quando era moço, eu namorei um bocado. Fui noivo quatro vezes antes de casar.

Por que o senhor acredita em padre e político?

Porque padre só fala o que é direito e o político dá tudo o que promete.

Tem certeza de que os políticos cumprem as promessas? 

Tenho, sim. O Quatia, que foi candidato a vereador por Amaraji, prometeu uma caixa de remédio para minha mulher e deu.

E o senhor deu seu voto a ele?

Dei, sim. Ele ganhou.

Suas crianças têm problemas de saúde?

Por causa do sol quente e da poeira, elas têm gripe. Têm também umas crises de vermes. Quando alguma aparece com a barriga grande, eu levo pro médico da usina ou da prefeitura de Amaraji. Compro remédios lá mesmo, se o dinheiro der.

Por que as pessoas honestas vão para o céu?

Porque Deus só aceita gente de bem.

O senhor já esteve em situação mais difícil do que agora?

Já passei mais aperto. Quando estava no engenho Pedrosa, em Cortês, eu só tinha dinheiro para comprar uma quarta de sardinha e meio quilo de farinha para passar três dias. Agora, pelo menos, eu tenho um salarinho. É curto, mas a pulos dá para ir levando.

O senhor sabe o que é dólar?

Dólar é dinheiro.

Dinheiro de onde?

Do Brasil.

E quanto vale um dólar?

É muito dinheiro, sei responder não.

Que doenças o senhor tem medo de pegar?

Berculhoso (tuberculose) e anemia de sangue.

O senhor já ouviu falar em aids?

Nunca.

Que tipos de doença o senhor tem?

Tenho poucas. Dor de cabeça, gripe…também sou meio curto da vista por causa de uma pancada que levei cortando cana.

Como o senhor resume a sua história de vida?

Nasci e me criei aqui. Tenho treze filhos e dei conta de tudinho.



Fonte: Revista Veja Edição 1213, de 18 de dezembro de 1991.


 

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