Simplesmente Bruna

 


"So vendi a minha imagem. O resto guardei para mim"


QUEM me abre a porta do apartamento de hotel e a propria sereiazinha de Andersen, disfarçada sob o nome de Bruna Lombardi - modelo de sucesso, atriz de televisão e principalmente autora de textos. Ela evita dizer poeta e se recusa a chamar seus escritos de versos - seu primeiro livro, No Ritmo Dessa Festa, foi publicado no ano passado.

Detesta conceitos e dificilmente chamaria um copo de copo. Bruna lembra a sereiazinha porque nela nada parece concluído, toda a sua pessoa dá a idéia de ser feita de água: rosto cristalino, olhos translúcidos, uma transparência que pode, de repente, ficar turva (dependendo de quem a aborde e fale). Há sempre o risco de Bruna se liquefazer - de, de repente, virar uma poça de água no tapete.

Antes que me certifique se ela realmente fala, já está no telefone, discutindo em italiano (os pais são italianos, Ugo e Ivone) numa bela voz que decerto o consumo ainda não descobriu. O resto da imagem de Bruna Lombardi já foi pulverizada em milhões de anúncios distribuídos pelos meios de comunicação de massa e exaltando xampus, sabonetes, ações da Bolsa, cigarros da moda. Milhões de sujeitos que fumam determinada marca - por que a viram na boca sensual dessa loura esbelta, em algum cartaz de rua ou no vídeo imaginariam poder dizer:

"Conheço esse rosto."

Não conhecem. Bruna não é a Bruna geral, distribuída entre as massas copiadas pela tevê.

"E preciso separar Bruna de Bruna", como diz Chico Buarque, severamente, no prefácio que escreveu para o livro da moça.

Abandonado o telefone, ela começaria a dar a entrevista se não tivesse entrado o almoço, numa bandeja. Oferecendo partilha — "Já almoçou?" - Bruna lambe delicadamente os lábios, num jeito de felina, numa gula de camponesa.

Tem, aliás, braços fortes em contraste com a figurinha delgada. Concluo que poderia, tranquilamente, cortar trigo como aquelas comuneiras que vi, ha poucas semanas, na China.

Bruna Lombardi - fez propaganda de adoçantes artificiais, mas está comendo com uma bela fome de trabalhadora - responde que é verdade, que ela poderia cortar trigo. Ou cana. Sempre se sentindo ótima.

— "Porque eu sou, antes de mais nada, uma pessoa receptiva. Toda atenta e sensível, todos os poros abertos, captando tudo. Se eu fosse trabalhar no campo, sentiria todos os cheiros, notaria todos os vôos. E ficaria, talvez, até mais perto das pessoas. Que são, realmente, a grande festa da minha vida."

Poucas frases lhe mereceram tanta contestação como a de Sartre: "O inferno são os outros." Bruna Lombardi acha que os outros são descobertas diárias e maravilhosas, para as quais, a sua maneira, desenvolve dons de percepção adivinhatória.

- "Muitos esperam ser adivinhados. Quem passa cego não vê. Eu nunca passo cega. Na rua, no ônibus, ando sempre de olho bem aberto, todas as antenas ligadas, para os rostos, para as vidas. Posso me enriquecer muito, da casa até o trabalho."

Sua imagem já foi vendida de mil maneiras, por mil firmas.

Mas por trás e além dos batons, cosméticos, marcas de toalhas, existe uma Bruna que nao se pinta e, principalmente, não se mascara. E tem uma profunda necessidade de claridade.

— "Todos os dias fico mais certa de que é preciso ser claro. Dizer tudo o que é necessário. Evitar guardar o silêncio capaz de se transformar em mentira. Ou em mal-entendido. Outro dia escrevi um texto (ela evita dizer conto) que era a história de uma mulher cercada de mal-entendidos. Ela e sua vida em silêncio, desaproveitada, dissimulada. Mulher de antigamente, da sombra.

Então as pessoas que gostam de classificar, classificaram: 'a

Bruna escreveu um conto erótico'. Mas não era erótico senão na medida em que o amor também é uma vivência erótica, mesmo o que não vai para lugar nenhum.

Quanto à própria Bruna, ela vai mesmo em direcão do amor: dos amigos, dos que serão amigos, dos pais, dos vizinhos, de todos capazes de troca. Acredita muito em troca e um dos seus textos diz:

Dá-me o que de possuir tu não te importas/ E eu multiplico o que te falta e em mim existe.

Em 1976, quando participou do encontro Cultur-Literatura promovido pelo Governo do Rio Grande do Sul, ficou surpreendida com o apoio manifestado por gente consagrada como Clarice Lispector, Nélida Piñon, Mário

Quintana, todos dando estímulo aos seus textos.

"O carinho de Mário Quintana pelo que eu escrevi me fez chorar horas e horas." Ela não teme chorar, rir ou sofrer o que se fizer necessário — até o fim.

Explica que tem vaidade, mas não da beleza que vem encantando os que assistem à novela Sem Lenço Sem Documento, ou que vende tantos produtos diferentes.

Sua vaidade é das coisas que conseguiu criar por dentro dela mesmo e do trabalho que vem fazendo — sozinha e sem ajuda de analista — para se abrir cada vez mais "a todos os ventos do mundo".

"Por isso gosto muito de gente velha. Acho que saber envelhecer é não ir diminuindo como pensam tantos — porque o velhinho às vezes encolhe, se reduz fisicamente -, mas ir se ampliando, crescendo, recebendo tudo.

Entesourando."

A cabeça de cabelos louros de Bruna Lombardi é muito solicitada. Tanto quanto a sua face diáfana, de opalina (fume isso, beba aquilo, compre o produto tal e seu casamento durará). Mas essa cabeça ela guarda para elaborar seus textos. Dá o rosto ao vídeo, mas só se dá realmente ao papel colocado diante dela.

"Desde muito pequena, tenho paixão por letra.

Quando aprendi a ler, fiquei louca de alegria. Copiava e recopiava pedaços de versos ou citações que eram publicadas nos livros didáticos... Quando descobri a biblioteca da escola, fiquei deslumbrada. Os livros que eu não podia pedir emprestado (porque em brochuras caras) eu copiava.

Aconteceu isso com Manuel Bandeira. E houve um livro de José de Alencar decorei inteiro. 


Para Bruna, é lamentável ver a selva de pedra crescer no lugar dos jardins.


ENTRE um gole de café e outro, Bruna Lombardi recita um dos capítulos de Iracema. Mostra a pequena máquina de escrever colocada num canto. “Primeiro escrevo à mão, depois passo para a máquina. Acho meio assustador ficar datilografando logo o texto… As letras olhariam muito para mim."

Olhar para Bruna Lombardi, comprar tudo que ela anuncia parece ser uma compulsão violenta do público. No entanto, a modelo mais cara do Brasil, a teleatriz de Sem Lenço, Sem Documento, se confessa sóbria em relação ao consumo, quase austera.

"Meus pais são europeus, estou ligada a uma cultura que não gosta de desperdícios. Uso meus vestidos até o fim. A calça comprida fica velha, passo a tesoura e transformo num short. No vídeo, posso dizer com a cara de quem está em êxtase: Troque seu tapete por outro e você será uma nova pessoa.' Mas na vida real detesto o consumismo sem propósito, o modismo, o novidadeiro."

De muita coisa em voga ela discorda, como do hábito das pessoas "se deixarem consumir em programas sem sentidos, se dispersarem em deslumbramentos e falsos prestígios". Acha que onde não há verdadeira emoção surge uma caçada estéril à sensação.

Apesar dos numerosos compromissos, Bruna se reserva muito dentro de si mesma. Para sentir o que vai escrever, antes de enfrentar a folha em branco.

"Diante do papel, eu não faço concessão nenhuma." Nos seus relacionamentos, tambem evita qualquer falsificação ou imposição, pois acha que uma coisa é pintar os olhos, usar make up cintilante para vender sonhos a preço fixo. Outra, se envolver com as pessoas. Nessa tarefa, quer total autenticidade.

“Estudei em colégios caretas, vi muita mentira em minha vida, mas fiz questão de desaprender o que aprendi e aprender tudo de novo. Por mim mesma."

Como a maioria dos de sua geração - Bruna Lombardi tem 25 anos — ela se preocupa com a depredação que a civilização está fazendo na Terra um desequilíbrio paralelo ao causado pela necessidade de consumo a qualquer preço. Revela que fica revoltada diante de matas derrubadas, árvores feridas, rios poluídos, muros de cimento substituindo jardins. Por esse motivo, sempre que os bem comportados lhe dizem "Bruna, isso é uma idéia absurda", responde alto, à italiana: "Absurdo é o que vocês estão fazendo com o mundo." E a moça que vende tudo, mas não cede nada de si mesma, acha que o lucro é um poluente. Dos mais perigosos.



Entrevista a Heloneida Studart

Manchete número 1330 -15 de Outubro de 1977.



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