Em alemão, por favor!






Posso te fazer umas perguntas então?

- Só se for em alemão!

Assim começou a conversa com Christine Luise Trein, 79 anos, mãe de oito filhos e conhecida como Oma por seus 13 netos. Acanhada ao falar do presente, é no passado em que ela se refugia, nas histórias de sua infância ao lado dos seis irmãos e nas histórias da Alemanha e da guerra.

Dessa época, ela se lembra da menina de 11 anos que precisou se desfazer das bonecas e resolveu enterrá-las, quando precisou ir à Alemanha com seus pais e irmãos. Ou então da Hitlerjugend (juventude hitlerista) da qual fez parte, onde, em meios aos bombardeios da guerra, ela e outros jovens faziam trabalhos manuais, tricotavam para os soldados e cantavam.

Ela se lembra da menina que tentava entender porque sua colega judia havia sumido, de onde vinha aquela fumaça e aquele cheiro, por que o céu parecia fogo e por que sua casa havia sido bombardeada e destruída. Christine recorda apenas de correr com a irmã mais nova no colo, de se refugiar nos bunkers, do medo da mãe de se esconder no porão, de morar em um pavilhão desabitado de prisioneiros após perder sua casa. Nele as janelas eram feitas de plástico, e no espaço onde caberiam no máximo oito pessoas, havia 15.

Ela não esquece o frio que sentiram, da fome que passaram, do cardápio diário de água morna com dente-de-leão ou dos raros mingaus de aveia pela manhã. Enquanto seu pai, Hans Spieweck, lutava pelo Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães), sua família sobrevivia. Embora fizessem parte do partido hitlerista, a mãe de Christine não se envolvia e por isso ela e a família acabavam sofrendo ameaças de perseguição.

Porém enquanto Christine recorda essas histórias, ela se lembra de uma frase que leu recentemente, onde a mensagem diz que as pessoas que têm fé no protetor e salvador, serão sempre protegidas. E é por esse motivo que ela acredita que nada aconteceu com sua família e que por isso eles sobreviveram.

Nascida em Ibirama, Santa Catarina, Christine dividiu sua infância entre as cidades de Luzerna e Joaçaba, também no estado catarinense. Dos sete irmãos, foi a primeira filha mulher a nascer e com ela, vieram as responsabilidades.

- Quando eu tinha apenas quatro anos minha mãe me mandava ir até o rio para lavar as fraldas da minha irmã mais nova. Eu ia sozinha.

Mas o medo dela não era de ir ao rio, mas do cachorro que sempre a encontrava no trajeto e latia pra ela.

- Muitas vezes eu subi em árvores pra fugir dele.

No ano de 39 até 42, quando estiveram em Joaçaba, Christine se lembra de ter ficado apenas um ano no colégio. Ela e os irmãos eram perseguidos por serem alemães. O pai não deixou mais eles irem ao colégio e contratou uma professora particular, cujo nome Christine ainda recorda: – Era Vera.

Mas Christine lembra também das coisas boas da infância e das peraltices. Como seu pai era professor, eles moravam no mesmo prédio da escola, portanto ela aproveitava para brincar com os alunos no recreio. Ao descobrir o medo deles de sapo, não exitou em pegar um na mão e correr atrás dos amigos, assustando-os.

Ela relembra também da boneca feita de papelão que se desmanchou quando Christine lhe dava mamadeiras de verdade, com água. Das férias passadas em Treze Tílias, em Santa Catarina, quando ela e os irmãos se penduravam nos sinos das igrejas católicas e se amontoavam em cima do burrinho do padeiro para andar e despencar, cada vez que ele parava.

Viveu a adolescência na Alemanha, voltou para o Brasil em 1947, então com 17 anos, e de repente se descobriu a Christine esposa. Casou com o pastor Albino Trein em 1951, na cidade de Luzerna. Devido à profissão do marido, Christine morou em diversas cidades, o que, segundo ela, não foi problema.

- Meus pais sempre mudaram muito, nunca ficamos mais de três anos no mesmo lugar, então eu estava acostumada.

Ela passou por Luzerna em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul por São Pedro do Sul, Feliz e, por fim, se estabeleceu na cidade de Gramado desde 1977. Depois de dois anos casada, teve o primeiro filho, Hans, seguido de Wolfgang, Elisabeth, Ursula, Albin, Hanna, Paul e Dorotéa. Uma das filhas lembra Christine como uma mãe severa e exigente, que tentava impor seus desejos e vontades e que não gostava que os filhos batessem o pé pra ela. Mas essa mesma mãe não saía do lado da cama dos filhos quando estes ficavam doentes. Ela sabia ser zelosa e carinhosa, tanto que as crianças até queriam ficar doentes para ter mais atenção da mãe.

Nas questões familiares, a última palavra da casa era sempre dela, o “Opa” não se manifestava. Como sogra, a primeira impressão deixada em um dos genros foi de medo, pelo seu jeito imponente e por ser a “Frau pastor” (mulher do pastor).

Para os netos, a Oma é formada por diversas lembranças: o cheiro do perfume de lavanda, as comidas de Domingo, o frango à Califórnia, os enrolados de carne com massa, o pretzel, os bolos do café da tarde, o Kopenhagnenzintzöpfe (trança de amendoim), os natais cheios de magia, com músicas cantadas em alemão, o pinheiro decorado com velas, os docinhos dados aos netos, aos beijos, dizendo ein süßes Kuss (um beijinho doce), também o seu jeito organizado e de cumprir horários.

Durante toda a entrevista, foram poucas as palavras que Christine falou em português. E quando questionada sobre sua personalidade, e sobre a influência da cultura alemã em sua vida, ela simplesmente diz:

- Eu sou assim, esse é meu jeito, essa é a minha cultura.

A influência alemã se percebe em todos os aspectos, nas vestimentas que Christine usa, na culinária, ao ouvir no rádio as bandinhas, na preferência pelos cultos falados apenas em alemão, nos trabalhos manuais, nas festividades religiosas, como o Natal, onde há leitura de passagens bíblicas e canto em alemão e até mesmo na decoração. Na cozinha da casa de Christine, acima do mapa da Alemanha, há uma placa onde se lê: Dass Tägliche Brot gib uns heute (Pão nosso de cada dia nos dá hoje). Ela mesma diz que é uma alemã no Brasil, e uma brasileira na Alemanha, e para quem a conhece, essa é a impressão que fica. Dos familiares, sempre pediu que falassem em alemão com ela. Um dos netos, que se sentia frustrado por não saber falar, por incentivo da Oma, iniciou esse ano aulas de alemão. Enquanto conversávamos, ele falava algumas coisas em alemão e o rosto sorridente da Oma era de orgulho e satisfação.

E se hoje fores visitar Christine, é bem provável encontrá-la cuidando do jardim ou da horta, lendo algum livro, fazendo palavras cruzadas, ouvindo o rádio ou então, em uma de suas caminhadas. Mas aconselho, aprenda algumas palavras em alemão antes de encontrá-la, nem que seja o dialeto, ou então, diga logo: Ich spreche kein Deutsch (Eu não falo alemão) e boa sorte.


Foto da antiga casa dos pais de Christine, como se encontra hoje em Luzerna. Texto retirado do Blog de Barbara Keller, e datado de 18 de dezembro de 2009, e a qual sou profundamente grato.



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